terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Histórias de um homem-menino

Foi numa altura em que Amália Rodrigues andava “meio adoentada” que o produtor Mário Martins lhe ligou a dizer que tinha consigo uma cassete de “um miúdo muito bom” para ela ouvir. “Nesse dia cheguei a casa da Amália às sete da tarde. Recordo-me dela me ter dito que não estava com grande disposição e que queria deitar-se. Eu insisti, pus a cassete a tocar e às duas da manhã ela ainda ria às gargalhadas.” O miúdo chamava-se Carlos Paião e durante oito anos escreveu e deu a gravar mais de 80 canções para os mais variados artistas. Com a mesma facilidade tanto escrevia num dia para Lenita Gentil como no outro para a personagem de ‘José Estebes’.

Para Amália Rodrigues escreveu algumas canções, mas só ‘O Senhor Extraterrestre’ e ‘O Amigo Brasileiro’ foram a ser gravadas. Das 37 maquetas que um dia escolheu para si, a diva do fado ainda se sentiu tentada a dar voz à canção ‘É Fadista’, mas teve receio de chocar o meio mais purista já que o tema era uma paródia aos fadistas. O produtor de Paião recorda, a propósito, as palavras de Amália: “Ó Mário, afinal, é melhor não gravar!”

PROJECTOS INACABADOS

Foi já depois de ter escrito a famosa ‘‘canção’’ do beijinho para Herman José e de ter editado o seu primeiro single, ‘Souvenir de Portugal’, que, em 1981, Paião venceu o Festival RTP da Canção com ‘Play-Back’, quando todos esperavam uma vitória das Doce e de ‘Ali Babá’. Já lá vão 25 nos. Depois disso partiu para uma das mais notáveis carreiras da música ligeira portuguesa, só interrompida por um trágico acidente no dia 26 de Agosto de 1988.

Diz-se que terá escrito mais de 500 canções (só as tais 80 foram gravadas), mas mais do aquilo que fez, os que o recordam com saudade gostam de falar daquilo que Paião poderia ter feito. “Eu tinha para ele um projecto para fazer uma obra rock e um musical a partir de clássicos da literatura. Para Paião, todos os projectos eram bem-vindos, mas a partir de determinada altura ele deixou de ter tempo.”

MUITO PARA DAR

Escrevia depressa e bem. Do fado à canção infantil, da balada de amor à composição burlesca escreveu de tudo para todos. Joel Branco, o primeiro artista a gravar um tema de Paião, recorda o dia em que lhe bateu à porta e encomendou um tema a atirar para o rap. “Mandou-me entrar, deu duas voltas ao piano e em 15 minutos fez a música e a letra”. O tema chamava--se ‘Ora Toma’. Para David Ferreira, director-geral da sua editora, a Emi-Valentim de Carvalho, “o Carlos teve o azar de viver quando o Teatro de Revista estava decadente: sabia trabalhar sob pressão e teria escrito muitos mais clássicos se tem vivido noutro tempo e se tem vivido mais tempo”.

Carlos Manuel de Marques Paião nasceu em Coimbra em 1957. Do seu percurso profissional não consta qualquer nota de música até 1980, ano em que troca, em definitivo, a licenciatura em Medicina pela escola da canção. A partir daí, dedica-se a uma panóplia de actividades várias sob o mesmo denominador comum: a música.

A estreia aconteceu em 1978, no Festival de Ílhavo, de onde regressou a casa com dois prémios, nomeadamente o de melhor intérprete. Em 1980, os assessores directos de Mário Martins, o homem que descobriu e catapultou a carreira de Carlos Paião, ouviram uma cassete do músico e por incrível que pareça não gostaram. “Disseram-me que ele não tinha jeito para nada”, recorda o produtor. Só não saiu um puxão de orelhas, porque depressa as evidências se encarregaram de falar por si. Foi quando o ‘Play-Back’ ganhou o Festival e Carlos Paião iniciou uma carreira sem precedentes.

Se primeiro escreveu, depois decidiu cantar. “Ele não tinha aquilo a que se pudesse chamar uma grande voz. Mas aprendeu a tirar partido dela”, comenta Joel Branco, que guardará para sempre na memória a forma como o músico tentava sempre arranjar trabalho para os seus colegas de profissão. “Quando ia a uma festa a uma terreola, perguntava sempre se já lá tinha ido fulano tal e depois deixava os nossos contactos pessoais. Eu recordo-me que tive vários espectáculos arranjados por ele.”

O FINAL TRÁGICO

Carlos Paião desapareceu num trágico acidente de viação, aos 31 anos, ironicamente esmagado pela aparelhagem e pelas colunas de som que transportava no carro, um dia depois do não menos trágico incêndio do Chiado. “Uns dias antes tínhamos estado, curiosamente, a falar dos perigos na estrada”, recorda Herman José. “A sua morte foi violenta, como a de um familiar.”

Em vida, mais do que colaboradores, Carlos Paião fez amigos. Alexandra, Pedro Couceiro, José da Câmara, Dulce Guimarães, Vasco Rafael, Nuno da Câmara Pereira, Amália Rodrigues, Carlos Quintas... a lista é quase infindável. As memórias de hoje são as de um homem-menino que gostava de rir e fazer rir. “Lembro-me dele ao telefone, em chinelos. Atirava-os ao ar e ia a correr apanhá-los, como um miúdo”, conta Ana.

Mário Martins recorda o dia em que os dois foram ao Japão. “Tocámos num dos maiores festivais do Mundo. Durante os ensaios, vimos a apresentadora, uma chinesa enorme. Carlos chamou-me e perguntou-me: Sabes como é que ela se chama?: ‘Kusuda!’”

PORQUE REFILAR FAZIA MAL À VESÍCULA

Todos são unânimes. Carlos Paião sabia como ninguém brincar com as palavras. Humor, humor e humor. Para si, rir era o melhor remédio e era essa a mensagem que fazia passar a todos, mesmo para quem não soubesse cantar ou sequer assobiar. O mais recente disco lançado pela EMI Portugal é disso um bom exemplo. Para ouvir estão alguns dos maiores sucessos do compositor interpretados por algumas das vozes que os imortalizaram, da ‘Canção do Beijinho’, de Herman José, ao ‘Quanto Mais Te Bato’, de Ana, passando por ‘O Fado é Fixe’, de Vasco Rafael.

Para quem muitas vezes disse que Carlos Paião estava à frente do seu tempo, qualquer uma das suas canções é prova bastante. Escutem-se por exemplo ‘Trocas e Baldrocas’, ‘Refilar Faz Mal à Vesícula, Mais o Diabo a Sete’, ‘Estou Velho’, ‘Fado Reguila’ ou ‘Ai que Pena’. Finalmente ‘Cinderela’, ‘Play-Back’ (que o levou ao Festival da Eurovisão, em Dublin, em plena lua-de-mel), (...), e ainda ‘Bamos Lá Cambada’ que andaria na boca de todos. “Uma sexta-feira pedimos ao Carlos um hino não oficial para a participação portuguesa no México’86 e na segunda-feira seguinte ele apareceu com o ‘Bamos lá Cambada’, que é talvez o melhor que já tivemos no nosso futebol”, recorda David Ferreira.

AS MEMÓRIAS QUE OS AMIGOS GUARDAM DELE

“ERA UM MIÚDO COMO EU" (Herman José)

“Recordo as tardes de trabalho em casa do Carlos. Passávamos o tempo a rir e levávamos raspanetes da mulher porque estragávamos a alcatifa e os móveis. Ele tinha uma cadela que ficava histérica com as nossas brincadeiras. Era um miúdo como eu”, lembra Herman José. Paião escreveu várias canções para o humorista, 12 das quais só para o personagem Serafim Saudade. O compositor chegou a participar no ‘Humor de Perdição’, a fazer de médico, profissão que nunca exerceu.

“TINHA-LHE PEDIDO UM FADO” (Ana)

Ele era “único talentoso e genial”. Ana insiste nos adjectivos para caracterizar a obra de Carlos Paião. “Ele fazia música popular sem ser brejeiro e era entendido por todos.” A morte impediu-o de fazer mais. A cantora recebeu a notícia a caminho de um espectáculo. “Foi a noite mais difícil da minha vida. Uns dias antes tinha-lhe pedido um fado.” Ana foi a primeira cantora feminina a gravar um tema de Paião. Ficou amiga de família. “Ainda hoje, a mulher dele continua a ser a minha médica.”

“SENTIA QUE IA DESAPARECER” (José Alberto Reis)

Foi com a canção ‘Palavras Cruzadas’ que José Alberto Reis participou no Festival RTP da Canção em 1989, “já a título póstumo”, recorda. A canção, curiosamente, nunca viria a ser gravada. “Conheci o Carlos Paião no Casino da Póvoa do Varzim. Foi um ano antes dele falecer. Voltámos a encontrar-nos numa discoteca no Porto e recordo-me que ficámos à conversa até de manhã”, conta o cantor. “Numa das últimas conversas que tivemos disse-me que sentia que ia desaparecer.”

“LEVAVA SEMPRE OS PAIS” (Nuno da Câmara Pereira)

“O Carlos Paião era um génio e morreu cedo como todos os grandes compositores e escritores.” Para Nuno da Câmara Pereira as memórias ainda estão muito vivas. “Recordo o facto curioso dele levar quase sempre os pais para os espectáculos.” O primeiro contacto aconteceu na EMI-Valentim de Carvalho, editora que partilhavam. Nuno da Câmara Pereira gravou três temas de Paião, mas destaca toda a obra. “Ele sabia transformar uma imagem poética numa imagem real.”

Miguel Azevedo / Correio da Manhã, 25/11/2006

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